Garanto-vos: hoje ganhei novas manchas. Estou com uma espécie de varicela ou sarampo da alma. A única coisa que não percebo é como apanhei isto. Dizem-me que pode ser uma coisa qualquer nos genes. Fui ao médico e tudo. Radiografaram-me e o resultado foi o que vêem em cima, uma espécie de rabiscos em pedaços da alma. Se se nasce assim, digo-vos, devia haver uma espécie de controlo de qualidade, uma garantia vitalícia, esse tipo de coisa. Vá lá perceber-se que raio significam manchas destas. E por que é que dão à costa quando menos se espera. É que até estava bom tempo, acreditem, e preparava-me para ir ler para a praia, óculos de sol e corta-vento para parecer assim uma espécie de surfista a pender para o intelectual. Mas levantou-se uma ventania, começaram a aparecer-me o raio das manchas, assim ao estilo de pop-ups indesejados. Só que não há software para controlar isto, digo-vos eu. Fui às urgências. Deram-me ben-u-ron e calmantes. Mais uma doença de senhoras, aposto. Quando não há software de prevenção há, pelo menos pré-formatação defensiva. Não é nada sério, có coisas de senhoras. Imagino quantas coisas de senhoras não catalogadas vão por esse mundo fora... A ignorância serve o domínio dos inseguros. Mas, aí está: admiro incondicionalmente essa capacidade alheia de transferir o inexplicável para o domínio confortável do lugar-comum - nervos, coisas de senhoras, a vida tem destas coisas, o que não tem remédio remediado está. Lá se foi a minha tarde de sol e leitura. Lá se foi a minha magra expectativa de tranquilidade. Lá se foi a paciência. Arrumei o ben-u-ron no armário, porque até fica bem a caixinha azul alinhada ao lado das outras, muito simétricas, muito band-aid. Os calmantes meti-os no bolso. Nunca são demais, de facto. Imaginem que uma das manchas saltava, assim de repente, e me fazia apertar os gasganetes ao médico que até era simpático, apesar de ter mais olheiras e rugas do que eu... Bem, mas já passou. As manchas continuam, mas a receita foi de grande tranquilidade: não sabemos o que são, mas é melhor não saber o que é do que ter a certeza de que é alguma coisa má, não é? Que raio de gestão de receios é esta? Nunca percebi: se não se sabe o que é, como é que se sabe que não é mau? Eu que o diga, eu que sinto estas manchas, que tenho de me deixar surpreender e conviver com elas. Que me adianta não saber o que são? Estão cá, não estão? Então? O que são? Porquê? Como? Quem me dera ter ido para a praia ler o parvo do livro. Ao menos, mesmo que a narrativa não seja linear, temos sempre a certeza que ali é uma página a seguir à outra, esta antes daquela, outra a seguir a esta, etc. Haverá alguma coisa mais segura e certa do que a forma como uma página se segue à outra? Quantas vezes nos podemos gabar do mesmo nesta vida. Tenho a certeza que é isso que me faz gostar tanto de ler. Ler é seguro, mesmo quando algum maldito autor se diverte a inquietar-nos e a trocar-nos as voltas, a mudar o mundo só para nos lançar em inquietantes dúvidas. Chegados ao fim, podemos sempre fechar o livro, arrumá-lo e pegar noutro. Se pudesse, transformava já estas manchas num livro, de preferência estupidamente bem organizado, com índice, fita colada à lombada a servir de marcador, páginas marcadas, capítulos de títulos esclarecedores, narrativas clarras e concisas, finais conclusivos de argumentos óbvios. A leitura, acreditem, pode muito bem ser o paraíso. Aqui, nas nossas mãos, numas centenas de páginas, preto no branco. Como as radiografias. São estampas que não nos dizem rigorosamente nada. Basta garantirem-nos que estão óptimas para sabermos que têm um final feliz.